Cuentos :  Doação dos olhos
Resolvi! Vou doar meus olhos. Afinal, depois de muito pensar, cheguei à conclusão de que seria o melhor para eles.
O que eles vão fazer quando eu morrer? Se eu não os doar, eles irão comigo e apodrecerão também, não é mesmo? Não, não quero este triste fim para os órgãos que me fizeram ver maravilhas. Ainda mais os meus... Não estou querendo "puxar o saco", mas eles são ótimos. Enxergam bem à qualquer distância. Também pudera, eu os exercito bastante! Estão sempre em forma, apesar das pancadas e dos ciscos que os visitam de vez em quando.

É, vou doar os meus olhos... Será o melhor para eles. Não quero, quando morrer, que lá em cima (ou lá embaixo?), ao encontrar-me com alguém que foi cego, ficar arrependido quando ele começar a se queixar de que, por falta de humanidade, nunca conseguiu ver a terra, o mar, as plantas, as pessoas, os animais... Não sabe como é o azul do céu e do mar, que tanto ouviu falar; Não sabe como é a beleza das flores, das mulheres, das crianças... Que por falta de visão passou por esta vida, sentiu tudo, mas não viu nada; Não pode amar uma mulher (no caso, se eu estiver conversando com algum homem) pela atração física e sim por outros porquês que a falta de visão procura "compensar"... Mas, nunca é a mesma coisa.

Enfim, não quero ouvir o "lenga-lenga” de nenhum cego, e ficar com remorsos. Porque, se algum deles vier falar comigo, eu direi: Meu amigo, eu doei os meus olhos... Agora, não tenho culpa se eles não os deram a você, certo?

E também posso receber algum agradecimento de alguém que foi beneficiado com os meus olhos. E daí passaremos a conversar sobre o assunto:
-- Como é, você gostou dos meus olhos?
-- Gostei sim, rapaz. Eles eram ótimos! E olhe que eu fiquei dez anos com eles, e nunca precisei ir ao oftalmologista... E você, foi alguma vez?
-- Eu fui uma vez só. É que eles estavam "minando", sabe como é, né?
-- Eu sei... Eles ainda estavam com esse problema. Mas isto não era nada. Foi por você força-los muito...
-- Ora, mas afinal, eu tinha que testa-los, não tinha?
-- Tinha, mas foi demais.
-- É, eu devo ter exagerado mesmo... Sim, e como foi você, o que fez com eles?
-- Fiz a mesma coisa que você: Doei-os novamente. Não queria vê-los estragando debaixo da terra...

A.J. Cardiais
1981
Poeta